domingo, dezembro 05, 2010

"O Alufá Rufino" conta história de escravo que foi vendido para traficantes brasileiros


Nas malhas do tráfico negreiro: Alufá Rufino e o Atlântico Sul do século 19


A vida de Rufino José Maria, escravo liberto que passou a integrar o tráfico negreiro, ressalta o uso ambivalente da escravidão na segunda metade do século 19, tanto para a busca da hegemonia britânica, em nome do antiescravismo, como para a construção da identidade brasileira, em torno de ideias escravistas e anti-imperialistas.


AINDA QUE NÃO SEJA tão usual como nas "ciências duras", o trabalho colaborativo em ciências sociais revela, em seus diversos campos, uma longa história de sucessos.

É o caso do notável banco de dados sobre o tráfico transatlântico de escravos elaborado por um grupo internacional de historiadores nas últimas três décadas, disponível em slavevoyages.org.

Em "O Alufá Rufino - Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c. 1822-c. 1853)" [Cia. das Letras, 488 págs., R$ 62], João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus Joaquim Maciel de Carvalho, três dos maiores especialistas na escravidão brasileira, juntaram-se numa empreitada que, ao narrar uma trajetória de vida fascinante, joga luz sobre importantes aspectos da história brasileira, africana e mundial.

O leitor se vê diante de uma pletora de temas, todos abordados com bastante cuidado: a conturbada história da Iorubalândia -a vasta região habitada pelos povos de fala iorubá, compreendendo terras nas atuais Nigéria e Benin; a escravidão urbana em diferentes províncias brasileiras; a resistência escrava no Brasil; as realidades de cidades africanas como Luanda e Freetown; as engrenagens do tráfico transatlântico de escravos na era da ilegalidade; o antiescravismo britânico; os processos de formação cultural e reconfiguração identitária na diáspora africana.

Os autores estão entre os maiores especialistas na escravidão brasileira: cada qual escreveu obras decisivas para a compreensão de nosso passado escravista, como as que tratam do maior levante de escravos urbanos na história das Américas, a Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador, em 1835, trabalho de João José Reis ["Rebelião Escrava no Brasil", Cia. das Letras]; das múltiplas formas de resistência escrava em quilombos do Amazonas, do Maranhão, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro ["A Hidra e os Pântanos", Unesp, de Flávio dos Santos Gomes]; ou da movimentada história da província de Pernambuco entre a Independência do Brasil e a Revolta Praieira (1848), de Marcus Joaquim Maciel de Carvalho.

Os três apresentam o resultado de um trabalho coletivo que consumiu quase uma década de pesquisa: a narrativa da vida do muçulmano Abuncare, nascido em data incerta, na década de 1800, na atual Nigéria, e que foi feito escravo nas guerras civis que destruíram o Reino de Oyó no início do século 19. Possivelmente embarcado em Lagos, Abuncare aportou na Bahia no ápice dos conflitos pela Independência do Brasil.

RUFINO

Adquirido pelo boticário pardo João Gomes da Silva, Abuncare -agora renomeado Rufino- passou a trabalhar como cozinheiro em Salvador.

Entre 1830 e 1831, partiu com o filho de Gomes, então cadete do Exército, para a província de São Pedro do Rio Grande do Sul, onde foi vendido a um novo senhor.

Logo, contudo, Rufino foi adquirido em hasta pública por José Maria Peçanha, chefe de polícia da província. Poucos meses após o início da Revolução Farroupilha, em 1835, conseguiu comprar sua carta de alforria pelo preço equivalente ao de um escravo adulto, assumindo no ato os dois primeiros nomes de seu senhor.

Na segunda metade da década, Rufino José Maria viveu como liberto no Rio de Janeiro. Na virada dos anos 1830 para os 1840, engajou-se no tráfico transatlântico ilegal de escravos. Até 1843, participou de um sem-número de expedições negreiras entre Angola e Pernambuco, sempre como cozinheiro e, eventualmente, pequeno traficante.

Em 1840-1, quando trabalhava no negreiro "Emerlinda", viu a embarcação ser capturada pela Marinha britânica, que a conduziu à colônia de Serra Leoa para julgá-la por tráfico ilegal.

ISLÃ

A temporada forçada em Freetown permitiu-lhe travar contato com a comunidade local de falantes de iorubá que professavam a fé islâmica.

Em 1843, regressou a Serra Leoa, onde frequentou uma escola corânica por um ano e sete meses. Após o intenso aprendizado religioso, retornou em definitivo ao Brasil, estabelecendo-se como alufá, um sacerdote muçulmano, em Recife. Em 1853, preso pela polícia pernambucana sob suspeita de envolvimento em uma conspiração escrava, narrou sua história às autoridades.

Os autores constroem o livro a partir deste último depoimento. Diante da parca documentação disponível sobre Rufino, optaram por valer-se de todas as referências possíveis sobre pessoas que, de um modo ou de outro, relacionaram-se com o africano -proprietários, autoridades, traficantes, parceiros- para iluminar "o conturbado mundo em que viveu, por onde circulou e que ajudou a criar por diferentes pontos do Atlântico". O livro, assim, "mais do que a biografia de um homem", oferece "uma história social do tráfico e da escravidão no Atlântico de Rufino, o muçulmano Abuncare".

Para cumprir tal objetivo, Reis, Gomes e Carvalho realizaram um notável esforço de investigação, com pesquisas em quase duas dezenas de arquivos localizados em quatro países e três continentes. Digno de nota é o domínio que demonstram da bibliografia especializada, sobretudo a africanista.

Além de analisar o contexto histórico do Brasil e da África no século 19, "O Alufá Rufino" (Companhia das Letras, 2010) percorre a biografia de Rufino José Maria.Rufino nasceu no antigo reino africano de Oyó. Na adolescência, foi escravizado por um grupo étnico rival.
Foi adquirido por traficantes brasileiros e levado para Salvador, na Bahia. Após muito sofrimento, obteve sua alforria. Tornou-se então cozinheiro assalariado de navios negreiros.
Mais velho, ele se mudou para o Recife, onde adquiriu o posto de alufá --guia espiritual da comunidade de negros muçulmanos. Escrita por João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus Joaquim de Carvalho, a trama documenta as aventuras desse ex-escravo africano. 
 

Leia abaixo um trecho do capítulo inicial da obra.
*
Rufino disse ser filho do reino de Oyó, provavelmente sua capital Oyó Ilê, onde nasceu no início do século XIX. Oyó destacou-se como um dos Estados mais poderosos da região interior do golfo de Benim, chegando a controlar durante largo período no século XVIII e início do XIX a maioria dos reinos localizados em território iorubá. Além disso, submeteu os reinos de Daomé a oeste, Borgu ao norte e Nupe a nordeste, que se tornariam seus tributários. Oyó dominava importantes rotas de comércio de escravos que vinham do interior até portos dos golfos de Benim e de Biafra. Parte importante do poderio militar de Oyó, com destaque para sua cavalaria, ímpar na região, vinha dos recursos obtidos de sua ativa participação no tráfico de gente.
No alvorecer do século XIX, Oyó já enfrentava alguns desafios à sua hegemonia na região. Daomé e Nupe lutavam para sair da sua órbita de influência e, mais importante, o reino foi abalado por dissensões internas. Em torno de 1796, um guerreiro chamado Afonjá, o are-ona-kakanfo (ou comandante em chefe do Exército provincial de Oyó), se rebelou contra o recém-empossado alafin (rei de Oyó) sob alegação de que esse cargo lhe cabia por mérito e direito de linhagem. Afonjá, além de importante chefe militar, era o líder político (ou baálè) da cidade de Ilorin, que ficava a sudeste de Oyó Ilê.
Sediado em Ilorin, Afonjá resistiu à autoridade do alafin durante duas décadas e, em 1817, decidiu jogar uma cartada decisiva ao incitar uma grande rebelião escrava em Oyó. Pois esse poderoso reino, além de promover o tráfico de escravos, era destes grande consumidor, ou seja, tratava-se de um Estado traficante à testa de uma sociedade escravista. A maioria dos escravos de Oyó vinha de territórios situados ao norte do reino, e entre eles a maior parte era haussá e muçulmana. Os povos de língua haussá ocupavam vasto território situado no norte da atual Nigéria, e ali um Estado muçulmano - o califado de Sokoto - foi formado em torno de 1809 sob a liderança dos fulânis, importante grupo étnico presente na região, obstinados devotos do Islã e responsáveis por um jihad iniciado em 1804.
Liderado por Usuman Dan Fodio - homem letrado, autor de eruditas obras religiosas, também poeta -, o jihad representou uma virada radical na história dos haussás e povos vizinhos. Inicialmente, a guerra santa teve como alvo principal os chefes haussás, acusados de oprimir os bons muçulmanos e de tolerar um estilo de islamismo sincretizado com a religião "pagã" local. Muitos adeptos desta, todavia, lutaram ao lado dos guerreiros do jihad com vistas a se verem livres de lideranças políticas amiúde tirânicas. Os haussás escravizados em Oyó eram principalmente vítimas desse conflito político-religioso que revolucionou a região, um movimento sobretudo de reforma muçulmana, de muçulmanos ortodoxos contra outros, acusados de relaxados, que no entanto evoluiu para uma guerra de expansão por todo o território haussá e para além de suas fronteiras, inclusive o país iorubá de Rufino. A revolta dos escravos haussás de Oyó, em 1817, marcaria o início da penetração muçulmana em larga escala entre os iorubás. 

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