A Poética do Jongo: resistência negra

“A POÉTICA DO JONGO: RESISTÊNCIA NEGRA E CELEBRAÇÃO DA VIDA.

Roda de Jongo em volta da fogueira - Quilombo São José da Serra - Valença RJ

RENATO DE ALCANTARA 


Resumo
Nessa pesquisa, pretendemos apresentar a permanência e atualidade de uma manifestação cultural tão antiga, baseada na simples e arguta leitura de tudo aquilo está disposto no mundo: o Jongo.
Originário dos batuques e danças de rodas da tradição Bantu, apresenta–se como dança Comunitária de origem rural que remonta à época da escravidão.
Pesquisadores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, registram,em 2004, Cerca de 15 comunidades jongueiras nos estados de São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro
Sabemos, através de suas frases poéticas, chamadas de pontos ou jongos, que os negros tiveram que pôr em prática suas habilidades de dizer de modo indireto e cifrado. Através de metáforas percebidas por seus iguais, os antepassados e as forças metafísicas eram Reverenciados; a dura vida no eito era rememorada; fugas ou encontros combinados. As múltiplas e movediças posições sociais eram percebidas e cantadas, geralmente de modo irônico.
Dessa forma, o Jongo é expressão cultural complexa, que transita no campo do sagrado e do profano. É uma instituição social na medida em que o conceito abrange, simultaneamente, a prática divinatória, dança, canto, canções, melodia, instrumentos, o momento da Confraternização e o grupo social dos jongueiros.
Se na diáspora a posse da terra é vedada, os cativos constroem, tomam posse e defendem o terreiro, espaço de chão batido enfrente às senzalas, onde se canta e dança.
Nele se difunde e são recriados conhecimentos, concepções filosóficas e estéticas,formas alimentares, música, dança: um patrimônio de mitos, lendas, refrões, em constante recriação, pois são respostas às demandas da realidade vivenciada por negros reunidos no cativeiro. É pólo irradiador de complexo sistema cultural no qual as manifestações orais, histórias sagradas, contos, adivinhas, lendas, expressões do canto, todos em constante recriação.
Sua permanência mostra a teimosia de pessoas que lutam pela sobrevivência, sem deixar de sorrir ou celebrar a dádiva da existência.

INTRODUÇÃO

Originário dos batuques e danças de rodas desta tradição Bantu, o Jongo apresenta-se como dança comunitária rural que remonta à época da escravidão.
Pesquisadores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, registraram, em 2004, cerca de 15 comunidades jongueiras nos estados de São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Mas percebem indícios de que haveria aproximadamente 20 comunidades e cerca de 25 grupos.
Dentre as comunidades catalogadas, destacamos, no Rio de Janeiro, o Jongo de núcleos do Morro do Carmo e Bracuí (Angra dos Reis) -, Barra do Piraí, Campelo (Bom Jesus de Itabapoana ), Miracema, Pinheiral, Santo Antônio de Pádua, Morro da Serrinha (Madureira), Quilombo de São José da Serra (Valença). Em São Paulo,as comunidades jongueiras de Tamandaré {Guaratinguetá), Cunha, Piquete, São Luís do Piraitinga, Lagoinha e Taubaté. Destacamos também, o Jongo de Carangola e São Mateus, em Minas Gerais e Espírito Santo, respectivamente.
Manifestação cultural complexa, que transita no campo do sagrado e do profano, o Jongo é uma instituição social na medida em que o conceito abrange, simultaneamente, a prática divinatória, dança, canto, canções, melodia, instrumentos, o momento da confraternização e o grupo social de seus praticantes,os jongueiros. Deste modo, grafamos a palavra com maiúscula quando nessa abrangente significação. No plural, enfatizam-se tanto os aspectos particulares
quanto gerais. Sabemos, através dos Jongos, que os negros escravizados tiveram que pôr em prática suas habilidades de dizer de modo indireto. Através de metáforas percebidas por seus iguais, os antepassados e as forças metafísicas eram reverenciados:

Papai era negro da Costa,
Mamãi era nega banguela,
Papai começô gostá de mamãi,
Foi e casô cum ela.
(ARAÚJO, 1964, p. 203).

A dura vida no eito que obrigava os negros a acordar antes do nascer do sol, após cinco ou oito horas de sono, era mencionada de modo jocoso:
Aquele diabo de bembo zombou de mim
Não tenho tempo de abotoar minha camisa,
Aquele diabo de bembo zombou de mim
(STEIN, 1990, p. 198)
A palavra bembo parece referir-se a mbembo, do kikongo[1]: voz, nome próprio (homem ou mulher); briga; ou do kimbundu mbembo, repetição de um som reenviado por um corpo duro, eco conforme registram PACHECO e SLANES (2008 ,p. 178). Dessa forma, os fatos narrados reconstroem as fissuras provocadas pela diáspora.
No Jongo, o processo de escolha temática e estruturação coletiva remete-se à rememoração ou reatualização de tradições ancestrais comuns a esses homens.
Devido às trocas simbólicas na diáspora, tais elementos e situações vão se modificando para se adequar às novas demandas.

SOB O SOM DO TAMBU
Oi Tambu, oi tambu
Quando eu for me embora pra bem longe
Quando eu for me embora pra bem longe, eu levo comigo
Ah esse som bate forte em meu coração
Tim tim tim tim tim , oi tambu
Tim tim tim tim tim oi tambu

A denominação genérica do tambor da área dos bantu é angoma. Essa palavra deriva do termo ngoma, oriunda do kimbundu ou kikongo. Por ampliação, a própria roda de Jongo, às vezes, recebe esse nome. O tambu, maior de todos, apresenta outros nomes dependendo da região, como caxambu, papai, ou guanazamba.Escavado, tem comprimento de 80 centímetros até mais de 1,5 metros e cerca de 40 centímetros de diâmetro.
Candongueiro é o nome dado ao tambor médio medindo entre 40 a 60 centímetros e o menor chamado de guzunga ou cadete. Algumas comunidades utilizam-se da puíta ou angoma-puíta. Uma barrica, sem fundo, encourada na boca. No seu interior, preso ao centro do couro, há um pequeno cilindro de madeira ou bambu, friccionado com um pedaço de pano úmido ou com a própria mão molhada, com isso se consegue um som surdo, por isso é conhecida como boi ou onça. Seu tocador é também chamado de maquinista. É a precursora da cuíca.
O tambor, para o negro africano torna-se elo relacional entre os planos terreno e metafísico, pois agrega a força vital do animal que fornece o couro, do vegetal que cede a madeira e a da terra, que fornece o alimento para os últimos e a fixação de tudo com o uso de minerais metálicos. Por último, o fogo, além de ser utilizado para escavar o tronco, é fundamental para garantir a afinação do couro.
Dispostos em círculo, os participantes são a assistência, composta por convidados da comunidade ou, atualmente, espectadores comuns, os instrumentistas e os jongueiros dançarinos. Não eram admitidas crianças e os mais jovens ficavam de fora observando. A roupa, branca ou alva, poderia ser especialmente reservada para a atividade ou ser roupa comum. Os pés, descalços em contato com o chão de terra batida. As mulheres sempre usavam saia rodada. Os jongueiros movimentamse no sentido anti-horário.e o primeiro passo sempre é dado com o pé direito acompanhando a batida do tambu.

NARRATIVA COM POESIA: O PONTO DE JONGO

O cântico entoado pelo jongueiro chama-se ponto. Ao contrário das primeiras, no Jongo há somente os símbolos orais e, portanto, pode ser falado ou cantado primeiramente pelo solista, com versos livres improvisados e tem o refrão respondido por todos.
Deve-se atentar para o fato de os jongueiros utilizarem as expressões tirar ou jogar um ponto quando se referem a iniciar o canto. Entendemos tal procedimento situado no código de coletividade que a roda exige: Ninguém o faz. Fazer  significaria ato solitário e individual e a dinâmica do processo não fixa autores e sim o próprio grupo. Dessa forma, a autoria dos pontos não é mais importante do que nenhum dos partícipes que precisam reconhecer nele a força de fazer a roda girar.
Além disso, quando se "tira" algo é porque ele já existia, era imanente à comunidade que comunga, toma parte do que é dito. Jogar está no campo semântico da diversão e, ao mesmo tempo da destreza. Só joga aquele que bebeu bastante da tradição jongueira, aprendendo e apreendendo seus mistérios, preceitos, metáforas e malícias.

Cheguei na angoma
Tinha muita diferença
Quero cantar meu pontinho
E meus pais velhos dão licença.

Tia Luiza e os demais jongueiros de Angra dos Reis costumam abrir assim suas rodas. Avisam que chegaram para o Jongo e pedem licença aos mais velhos. É um ato de respeito às regras de comportamento.
Quando algum jongueiro deseja cantar outro ponto, interrompendo o anterior,grita: "Machado!" ou "Cachuêra!". Ambos são elementos de corte, interrupção. Os tambores imediatamente se calam e a dança cessa até que se tire um novo ponto.
A linguagem dos jongueiros é dúbia, com imagens aparentemente simples, tomadas da realidade próxima (natureza, plantas, o trabalho da roça, os animais).
O sentido atribuído a entes é movediço, pois as decifrações dos códigos cantados eram exclusivas às comunidades, vigiadas continuamente por feitores, intendentes ou por brancos que se aproximavam da roda para buscar diversão.

A ÁGUA VAI EM RIBA E A PEDRA ESPIA

O primeiro ato em uma roda de Jongo é o de louvar os antepassados,o tambor, o terreiro e os santos do dia:

Bendito, louvado seja
É o Rosário de Maria,
Bendito pra Santo Antônio
Bendito pra São João
Senhora Sant'Ana
Saravá meus irmãos
(JONGO DA SERRINHA, 2001, p. 46)
Peço licença a Deus
Nesta terra que eu piso
Nesta terra que eu piso,
(Jongo de Pinheiral. In: JONGO DO SUDESTE, 2004, p. 39)

A abertura mostra a ligação entre o jongo e as práticas religiosas bantu que vão se cristalizar na umbanda e no candomblé. Tal fato mostra o papel híbrido das relações religiosas brasileiras. O catolicismo, que se impôs ao escravo, não conseguiu destruir suas crenças. Aquilo que, à primeira vista parecia um rito católico era subvertido através do fingimento, conforme relato de Carmo Moraes no documentário Morre congo, fica congo: "Eu entrava no jongo, primeiro me benzia:

Bendito louvado seja, bendito seja louvado. Bendito louvado seja, bendito seja louvado. Quer dizer tá benzendo e desbenzendo".
Assim, não se louvam os elementos do opressor. A festa é dos negros e de suas simbologias:

Eu vou abrir meu Cangoê
Eu vou abrir meu Cangoá
Primeiro eu peço a licença
A rainha lá do mar
Pra salvar a povaria
Eu vou abrir meu Cangoê
(Jongo do Tamandaré. In: Feiticeiros da palavra, 2001)

Eu vim aqui
E não vim pra demorar
Eu vim cumprimentar
O povo desse lugar
Eu cheguei aqui no Jongo de pé no chão
No balanço dessas ondas vim lá de Angola
Arrastei o pé na´ngoma poeira sumbiu
Pra pedir a proteção de Mamãe senhora
La, la, ê, ia, la, i,ê l,a la, eiê

É importante notar a presença de verbos de movimento nos pontos. A louvação é o momento da chegada que é breve, somente no período do Jongo, mas sempre se está fazendo algo, seja um gesto, um pedido. Os corpos estão no movimento da dança ritmado pelos tambores e as vozes fazem coro para o ponto tirado. O Jongo é o próprio tambor, ngoma onde se arrastam os pés descalços e a poeira do terreiro sobe. O congo se abre.
O tempo do cativeiro é relembrado em uma série de pontos. Neles podemos perceber o uso de expressões em kinbundu, bem como as sutilezas metafóricas dos cativos para informar a presença repentina do Senhor na roça:

Ei campo, quimô
Ei campo quimô
Piquira ta curiano
Piquira ta curiano ê...
(Ribeiro 1960, p. 24)

Piquira significa peixe pequeno e se mimetiza no escravo. LOPES (2004) informa que curuar origina-se do kimbundu Ku-dia, com correspondente ao umbundu Kulya e significa comer. Os versos anteriores significavam perigo, pois o campo queimou.
Como os peixes poderiam ficar se refestelando? Nesse sentido, os escravos intensificavam o trabalho.
Deve-se observar que, se há o uso de expressões em kimbundu, os escravos, além de entendê-las, delas fazem uso. Significa dizer que há indícios de que a língua das senzalas do Vale do Paraíba era uma versão simplificada do kikongo e não a Língua Portuguesa, como a historiografia da escravidão assiná-la. Quando proibido de usar expressões africanas já era especialista em modificar o sentido das coisas para planejar fugas, como neste ponto relatado por Salvino Pereira Rodrigues, jongueiro já falecido de São Matheus, Espírito Santo:

O galo já cantô bem cedo,
Levanta que chegô a hora,
Capitão-do-Mato tá durmindo,
Não chora por mim, não chora!...
(AGUIAR, s/d)

O "galo" aqui, com certeza, representa outro escravo que lidera a fuga sinalizando o momento em que ela deve ocorrer. Recapturado, serviria de exemplo para intimidar. Porém, o castigo cantado, transforma-se em foco de resistência:

O chicote cumeu no lombo,
Coitado do nêgo fujão,
Mais vale tentá fugí
Que vivê na provação!
(AGUIAR, s/d)

STEIN (1990, pp. 302-3) conta que ao saber da proclamação da Lei Áurea, os tambores reverberaram por três dias e três noites, tocando o caxambu. Ouviam-se pontos inspirados na hesitação do Imperador contrastando com o ato assinado pela filha:

Pisei na pedra
A pedra balanceou
O mundo estava torto
A rainha endireitou.

É notável a construção metafórica deste ponto. A forma verbal "pisei" tem sentido de confiar ou apoiar-se em algo ou alguém. Associando o nome Pedro à pedra, já que são sinônimos temos uma crítica ao Imperador e elogio à firmeza de sua filha.
Outro ponto vai indicar a surpresa com que a notícia foi anunciada:

Tava durumindo angoma me chamou
Ô se levanta povo o cativeiro acabou.
(Op. Cit., p. 302)

O cativo dorme e quem o acorda é o tambor. É o maior símbolo da ancestralidade que lhe fala mostrando o novo tempo. E não fala só para o indivíduo. Sua voz é o chamamento a toda povaria que se levante e seja livre.
Estes pontos emblemáticos vão possuir formas variantes, seja pela introdução de novos elementos ou pela mescla de versos entre eles:

Pisei na pedra
Pedra balanceou
Levanta meu nego
Cativeiro se acabou!
(FEITICEIROS DA PALAVRA, 2001)

Pisei na pedra, a pedra balanceou
Falou mal da rainha ta me fazendo
Falsidade
Pisei na pedra, a pedra balanceou
Falou mal da rainha ta me fazendo
Falsidade
(PACHECO e SLENES, 2008, p. 186)

Nesse ponto em particular, nota-se a simpatia com que o povo negro passa a ter com a Princesa Isabel. O que não ocorre com seu pai:

Tava no Ge quando o imperador passo
Respondo bom dia se quisé
Pruque lovado já cabo.
(RIBEIRO, 1960, p, 34)

Um Jongo de Angra dos Reis mostra que o negro deseja destruir os elementos que lembram o cativeiro:

Oi bota fogo na senzala
Onde negro apanhou.
(JONGO DO SUDESTE).

Com o passar do tempo, a realidade inquieta o liberto: Sua nova condição social o faz desempregado. Os mais velhos mendigam, os jovens migram para regiões de melhor salário, como no Rio ou São Paulo. Muitos permanecem no Vale do Paraíba fazendo acordos com os antigos senhores. E o Jongueiro, criticamente cantou:

Ahi não deu banco p'ra nos sentar
Dona Rainha me deu cama, não deu banco p'reu me sentar.
(STEIN, 1990, p. 304)

Além do seu sofrimento, os jongueiros lançavam críticas às estruturas políticas que percebiam:

Com tanto pau no mato
Imbauva é coroné
(RIBEIRO, 1960, p. 31 e STEIN, p. 248)

Esse ponto relaciona a embaúba (Cecropia peltata) árvore de caule oco e considerada pobre por essa razão, e o coronel, é aquele que manda. A união dos dois elementos comparados ao primeiro verso "com tanto pau no mato" mostra o sarcasmo do jongueiro. No mato há madeiras mais nobres que a embaúba e na comunidade, pessoas mais capazes na região, mas quem manda é o néscio.
Os pontos podem ter a significação alterada dependendo do contexto onde está.
Em Angra dos Reis, o Carmo Moraes canta um ponto similar que se refere às intromissões de pessoas desconhecedoras dos fundamentos do Jongo;

Com tanta madeira de lei nessa mata
E umbaúba é coronel.
(TEOBALDO, 2003, p. 72)

Os pontos vão desvelando a vida social das comunidades, suas inquietações, as histórias e memórias. As relações de trabalho, sempre desfavoráveis para o negro lembram a escravidão, conforme os pontos de Santo Antônio de Pádua:

Trabalhei numa fazenda
Que não tem trabalhador
Perereca corta cana
Marimbondo é moedor
Trabalhei numa fazenda
Tem vergonha de contar
Canjiquinha no almoço
Pela égua no jantar
(BATUQUES DO SUDESTE, 2002)

Tais pontos apresentam um padrão de cifra que caracteriza os pontos de jongo.Perereca aqui é o negro e marimbondo, o engenho. No segundo, canjiquinha e péla-égua são sinônimos, isto é, uma sopa de milho partido com carne e verduras.
Na cidade, as coisas não mudam muito. Um jongueiro fôra convidado para trabalhar em uma farmácia em Piedade, zona norte do Rio de Janeiro. À noite, tirou esse ponto na Serrinha:

Eu num é doutô,
Eu num é "fermêro".
Como vai tomá conta de butica na Piedade?
Eu num sabe lê,
Eu num sabe "crevê".
Como vai tomá conta de butica na Piedade?
(GANDRA, 1995)

A ironia e a metáfora são, sem dúvidas, armas estético-retóricas amplamente usadas nos pontos. Nas festividades há aqueles que servem para comunicar jocosamente ao anfitrião de que os jongueiros desejam comer e beber algumacoisa. Em Angra dos Reis, Tia Maria Luiza recorda:

Zé, ô Zé, ô Zé
Saco vazio não se põe em pé,
ô Zé, ô Zé, saco vazio não se põe em pé.
Em Angra dos Reis, Rosalvo Bernardo diria:
Carro sem boi não anda
E eu não canto sem beber.
(TEOBALDO, 2003)

Mas há também os pontos de demanda, onde o assunto é mais sério: alguns são desafios à inteligência dos participantes, que devem decifrar, com destreza, os enigmas ocultos nas metáforas, enfeitiçando aqueles que não os desatem.
Delcio Bernardo, de Angra dos Reis, diz também que há os pontos de demanda branda com advertências para se respeitar tradições ou para manter a ordem na festa:

Galinha assanha, não meche cum pinto
(Quilombo de São José, 2004)

Neste ponto deseja-se proteger uma pessoa querida que está sendo incomodada. O jongueiro diz que o problema passará a ser dele que é mais forte e protegerá o amigo tal qual a galinha faz com seus pintos.
No meio de jongueiros mais velhos, o jovem jongueiro deve respeitá-los, conforme mostrou Eva Lúcia, jongueira de Barra do Piraí:

Oi dá licença galo velho
pinto novo quer sarava

Ou Delcio Bernardo:
Cheguei na ingoma
Tive muita diferença
Quero cantar meus pontinhos
Meus pai veio dá licença
(JONGOS, CALANGOS E FOLIA, 2007).

Caso contrário ouviriam uma das seguintes reprimendas:
Galo cantou mentira não é dia
Cadê aquele galo que cantou no claro dia?
(JONGOS, CALANGOS E FOLIA, 2007).

Bate tambor grande
Repinica no candongueiro
Pinto pequeno tá cantando no poleiro.
(JONGOS, CALANGOS E FOLIA, 2007).

Essas demandas brandas servem para indicar que há uma ordem nas coisas. As ações dos jongueiros são reguladas por códigos de conduta que são inscritos na própria prática jongueira. Assim, o jovem apreende o jongo no interior dele próprio, não havendo uma escola formal de jongo.Ora, em roda de Jongo, de samba, de capoeira ou quaisquer outras de batuques ou artimanhas de pretos, há os de dentro e os de fora. Então, é preciso estar dentro para saber o que acontece e saber é respeitar, caso contrário, a demanda começa a se tornar mais pesada:

Vovó não quer casca de coco no terreiro
Porque lhe faz lembrar
Dos tempos de cativeiro

Outra variação deste ponto fala que vovó não quer palha de cana no terreiro.
Terreiro é o espaço mínimo reconquistado pós-Abolição e quase sempre roubado.Sendo assim, a negra ex-escrava reconquista seu direito à terra e a dar as ordens.Neste espaço ela quer fixar a lembrança em outros fragmentos que não sejam os que lembrem o cativeiro.
A palha, a casca de coco, aqueles que vêm às tradições com o intuito de se locupletar. Délcio Teobaldo contou um fato ocorrido em 2000 durante uma roda de Jongo. Os olhares cúmplices dos jongueiros condenavam, claramente, os que estavam de fora e cantavam, filmavam, batiam palmas e até ensaiavam rufar o tambor, sem se dar conta do rito dos pontos e da roda. Com este ponto, fizeram uma provocação mais pesada para eles:

Tatu tá cavucano
A catacumba do meu pai
Pra baixo ele não desce
Pra cima ele não sai

O ponto adverte duramente os que tentam penetrar, como o tatu, numa cultura que desconhecem. Ele não pode atingir os mistérios da ancestralidade, a que se refere a catacumba; nem é capaz de voltar à tona, com a informação incompleta, para passá-la adiante. Assim, o aventureiro fica no limbo, amarrado, parado.

CONCLUSÃO
Adeus, povo bom adeus
Adeus, que eu já vou embora
Pelas ondas do mar eu vim
Pelas ondas do mar, eu vou embora.

Chegamos ao final de nossa jornada. Claro que não esgotamos todo potencial narrativo e inventivo contido nas palavras dos jongueiros. Assonâncias, aliterações, metáforas, paradoxos e demais figuras de linguagens estão lá nas demandas, louvações e provocações jocosas, esperando para serem pronunciadas no terreiro, ao som de tambus . Novos sentidos são introduzidos e o Jongo segue em sua dinâmica sedutora e mágica inovação.
No convívio com Jongueiros, notamos a força com que vivenciam diariamente a solidariedade e a esperança. Como bem cantou Dona To, velha jongueira do Tamandaré:

Bate, bate coração pode bater
Não treme não oh coração
Pára de tremer
Bate, bate coração
Que nossa vida inda tem solução
- Graças a Deus -
(Feiticeiro da Palavra),

Pudemos perceber que decifrar um ponto depende da contextualização. O mesmo ponto, sem mudar uma letra, pode ter intenção completamente diferente, se aplicado à outra necessidade. Isso sem falar nos novos pontos, associados às demandas atuais daquelas comunidades. Na verdade, os pontos são charadas, mas não pedem recursos semânticos sofisticados para entendê-los. A força destes enigmas reside nesta simplicidade, vivida diariamente por pessoas que lutam pela sobrevivência, sem deixar de sorrir ou celebrar a dádiva do existir.
Jefinho, jongueiro do Tamandaré fez um ponto aos 20 anos de idade, conquistando o respeito dos velhos cumbas. Atava ele as pontas da vida. Aqui também o fazemos:

Saravá jongueiro velho
Que veio pra ensinar
Que Deus dê a proteção
Pra jongueiro novo
Pro Jongo não se acabar
(Feiticeiro da palavra).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Patrícia Gomes Rufino, A Educação na comunidade de Monte Alegre-ES
em suas práticas de construção da cultura popular . Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro Pedagógico da Universidade
Federal do Espírito Santo, 2007.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. 7ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1994.
DIAS, Paulo. A outra festa negra. In: JANCSÓ, István e KANTOR Íris (orgs.). Festa:
Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec: Edusp: Fapesp:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: vol. 02, 2001.
______ Feitiço das Palavras - a arte dos pontos de Jongo., In: VIII encontro de
jongueiros. Guaratinguetá. São Paulo: Cachuêra. 2003 (programa do encontro).
______ Registros do Jongo In: I Seminário Nacional sobre o Patrimônio Imaterial
do Jongo (9º Encontro de Jongueiros), 2005, Rio de Janeiro: O Jongo no Sudeste.
(CD-Rom). Rio de Janeiro: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
(CNPC)/Iphan-MinC, 2005.

(FUNDAÇÃO DE APOIO A ESCOLA TÉCNICA/ SEEDUC-RJ).



Jongo
jongo.jpg (28289 bytes) Dança de roda, com homens e mulheres dançando em um grande círculo girando no sentido lunar, ou seja, ao contrário dos ponteiros de um relógio.
O acompanhamento musical é feito exclusivamente por pequenos instrumentos de percursão, como os tamboretes de jongo. O cantador, que já fica no centro da roda, traz, às vezes, um chocalho nas mãos.
Também é comum o uso da puita ou angola, que consiste num pequeno cesto de vime ou taquara de caroços ou seixos, continuamente agitado, acompanhando o ritmo da dança.
Enquanto vão respondendo ao solista, às vezes dois, que está dançando no centro da roda, os dançarinos vão girando sobre si mesmos, ficando de frente para outro participante, executando uma coreografia de passos deslizantes, com movimentos alternados dos pés e, finalmente dando um pequeno pulo, reiniciando os passos deslizantes. Uma característica especial do jongo é que só é dançado à noite.

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